O debate não é sobre humor: é sobre quem paga a conta das piadas.

O debate não é sobre humor: é sobre quem paga a conta das piadas.

Lisdeili Nobre

11/20/20254 min read

Por Lisdeili Nobre*

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o PL 896/2023, que inclui a misoginia — ódio ou aversão às mulheres — no rol de crimes da Lei do Racismo. A relatora, senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), defendeu a tipificação, e, se não houver recurso ao Plenário, o texto segue direto para a Câmara dos Deputados. Até aí, nenhuma anomalia institucional: é assim que se faz lei em um Estado de Direito. Num país minimamente democrático, questionar a técnica legislativa é não só legítimo, como desejável: discutir limites do tipo penal, exigir clareza, evitar abusos, garantir legalidade e anterioridade são preocupações que fazem parte do próprio jogo democrático. O problema não está em levantar dúvidas jurídicas; está no modo como essas dúvidas são instrumentalizadas.

Quando o senador Jorge Seif (PL-SC) vota contra o projeto alegando que o texto é “vago” e pode gerar censura a adversários políticos, ele não se limita a um debate técnico. Ele aciona um repertório conhecido: o da “liberdade de expressão” como escudo para naturalizar violências. Em discurso, afirma que já existem “humoristas presos por piadas”, que o país está “chato”, onde “tudo é mimimi, tudo é misoginia, tudo é ódio, tudo é ofensa”, e conclui com a imagem nostálgica: “Imaginem hoje Os Trapalhões, imaginem hoje o Costinha… Estavam todos presos”. O que para o homem branco legislador aparece como “brincadeira”, “licença humorística” ou “saudade de um tempo em que se podia rir de tudo”, para as mulheres — sobretudo negras, pobres, lésbicas, trans — é a trilha sonora simbólica de uma pedagogia da violência.

Não estamos falando de abstrações. Enquanto o Senado discute se “não estaríamos exagerando”, o Brasil registra recordes sucessivos de estupros e estupros de vulnerável, feminicídios e violências domésticas. Por trás das “piadas” estão as narrativas que constroem a percepção de que mulher existe para ser julgada, testada, controlada e, se “desobedecer”, punida. As graças com estupro, feminicídio, “mulher que apanha porque gosta”, “menina que provocou”, não são ruídos inofensivos: são o fundo ideológico que ajuda a sustentar o dado estatístico. O mesmo vale para o riso em cima de jovens negros, sempre associados à “bandidagem”, ao tráfico, à suspeita permanente; e para a chacota com pessoas LGBTQIA+, reduzidas a caricaturas, alvo constante de humilhação pública.

Quando o senador reclama de um “país chato em que tudo é criminalizado”, o que está em jogo não é o medo da hipertrofia penal em geral — afinal, projetos de endurecimento de penas vivem passando com apoio entusiasmado dos mesmos setores. O que o incomoda é a possibilidade de que a pena finalmente atravesse o corpo branco masculino, acostumado a ocupar o lugar de narrador da piada e não de alvo da responsabilização. Aí a preocupação com o “Estado policialesco” aparece, curiosamente, não diante do encarceramento em massa de jovens negros, mas diante da hipótese de que um comediante, um político, um influenciador, branco e bem posicionado, possa ser responsabilizado pelas violências que propaga sob forma de entretenimento.

É exatamente aqui que o conceito de “racismo recreativo”, desenvolvido por Adilson Moreira, ilumina o debate. Ao analisar o humor racista, Moreira mostra como práticas discriminatórias são protegidas pelo rótulo de “só uma piada”: quadros de humor, memes, charges e programas televisivos que reforçam estereótipos raciais são absolvidos pelo Judiciário sob o argumento de que produzem “descontração”, não discriminação. O que o senador defende, no fundo, é a manutenção desse pacto: a ideia de que o riso funciona como anistia moral. O riso, porém, nunca é neutro. Ele diz quem pode rir, de quem se ri, e quem paga a conta desse riso no corpo, na rua, na delegacia, no obituário.

Quando se evoca Os Trapalhões e Costinha como ícones de um humor supostamente inocente, apaga-se que aqueles personagens — Mussum, eternamente bêbado; Zacarias, infantilizado; a “bicha” caricata; a empregada negra histérica — ajudaram a consolidar imagens que até hoje justificam a exclusão de mulheres e negros a postos de poder, empurrando-os para funções de subalternidade e subserviência. O que a nostalgia do humor “sem limites” chama de liberdade, nós chamamos de licença para continuar hierarquizando vidas. E é justamente esse regime de hierarquia que produz o cenário em que o Brasil bate recordes de estupro de vulneráveis, de violência letal contra mulheres, de morte de jovens negros.

Discutir o tipo penal de misoginia, portanto, não é “proibir piadas”. É recusar que o direito continue tratando ódio contra mulheres como dano colateral do show. É afirmar que liberdade de expressão não pode funcionar como salvo-conduto para a manutenção de um sistema inteiro de opressões travestido de entretenimento. Aqui, não se censura a opinião: responsabiliza-se o projeto de poder que se esconde atrás da gargalhada.

* Cronista, docente universitária, delegada de polícia civil, consultora em políticas públicas, membro da Academia Grapiúna de Artes e Letras (AGRAL) e coordenadora do grupo de pesquisa CRIMPOL – Estudos em Criminologia.

Fonte: Senado Federal — CCJ aprova tipificação da misoginia, mas votação é dividida
(https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2025/10/24/ccj-aprova-tipificacao-da-misoginia-mas-votacao-e-dividida)