Like, Compartilha, Cancela — e Morre
Na terra sem lei das redes sociais, o “vale tudo” ganhou novos contornos. Antigamente, a praça pública era o lugar onde se discutia política, criava-se fofoca e se assistia ao tempo passar. Hoje, essa praça se chama feed. Só que nela não há guarda, nem ética, nem limite. E o preço da ausência de regras, às vezes, é a vida.
Afirmativa
4/18/20252 min read


Na terra sem lei das redes sociais, o “vale tudo” ganhou novos contornos. Antigamente, a praça pública era o lugar onde se discutia política, criava-se fofoca e se assistia ao tempo passar. Hoje, essa praça se chama feed. Só que nela não há guarda, nem ética, nem limite. E o preço da ausência de regras, às vezes, é a vida.
Enquanto algumas crianças ainda brincam de esconde-esconde, outras escondem desodorante para participar do "desafio da vez". Uma inalação, uma parada cardiorrespiratória. E, depois disso, um minuto de silêncio interrompido por um novo trend. O caso de Sarah Raissa, ocorrido na última semana, levanta questionamentos sobre a responsabilidade das plataformas quanto a conteúdos perigosos e à segurança de menores. A lógica é simples: likes valem mais que fôlego. E o algoritmo? Só assiste.
Mas quem assiste também consente? Essa é a pergunta que não cala. O Marco Civil da Internet, que parecia um passo em direção à civilidade digital, virou um papel digitalizado em PDFs esquecidos. Já a Lei Geral de Proteção de Dados e o ECA gritam em silêncio pela defesa de corpos infantis que estão sendo moldados a filtros irreais e desafios mortais.
Não é só a saúde física que adoece. É a dignidade humana sendo rifada em tempo real. Pessoas acusadas de crimes são fritadas em vídeos com legendas coloridas, sem direito ao contraditório. Quem precisa de juiz, promotor e defensor quando se tem os comentários de um vídeo de três minutos e uma thumbnail chamativa?
O espetáculo continua. Alguns mostram boletos pagos como troféus; outros ostentam vidas que não cabem nem no contracheque, nem na consciência. Parcelam o IPVA e quitam o ego. Terminam relacionamentos nos stories, expõem traições com trilha sonora do momento e, no dia seguinte: “foi só um mal-entendido”.
Danças em velórios. Risadas em UTIs. Exposed com emojis de foguinho no post de luto. Lives para lavar roupa suja com a mãe, com o ex, com o mundo. E tem quem assista, com pipoca e opinião pronta.
A pergunta que fica: estamos todos anestesiados ou apenas distraídos demais para perceber que estamos assistindo — e aplaudindo — o colapso da nossa própria humanidade?
É urgente pensar numa regulamentação que não impeça a liberdade, mas que a torne segura. A internet pode ser uma terra fértil para conexões, mas hoje ela mais parece um deserto de empatia. Um palco de gladiadores onde os leões são soltos sem critério. E as vítimas, muitas vezes, são só crianças querendo pertencer.
Até quando o “engajamento” será mais importante que o envolvimento humano? Até quando vamos chamar de “conteúdo” aquilo que, na verdade, é ausência completa de consciência?
Talvez seja hora de parar de assistir e começar a agir. Porque o próximo desafio pode estar mais perto do que a gente imagina. E talvez ele não tenha botão de desfazer.
Sobre a Autora
Lisdeili Nobre é doutoranda e mestre em Políticas Públicas, especialista em Planejamento de Cidades, docente de Direito, cronista, delegada de polícia, produtora e roteirista de TV. Sua experiência une o olhar acadêmico e a prática em desenvolvimento de políticas para abordar temas relevantes da sociedade, cultura e economia.
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