"As camadas do tarifaço de Trump: economia, dados e geopolítica em disputa"

"O tarifaço de Trump é mais do que uma medida econômica — é um movimento geopolítico em camadas, que revela o medo dos EUA diante da autonomia crescente do Brasil no cenário global."

COLUNA DE OPINIÃO | LISDEILI NOBRE

7/31/20254 min read

COLUNA DE OPINIÃO | LISDEILI NOBRE
Tarifaço: muito além de Trump, um ataque em camadas à soberania brasileira

Há quem veja na recente escalada tarifária de Donald Trump apenas mais um movimento de campanha. Mas o chamado tarifaço não é uma mera bravata eleitoral. Ele revela um jogo de forças mais profundas, com várias camadas — da superfície ideológica à base geomilitar — em que o Brasil deixa de ser apenas um país atingido para se tornar alvo estratégico.

🌪️ Camada da Superfície: A Guerra Simbólica da Extrema Direita

Na camada mais visível, está a tentativa de reafirmação da hegemonia da extrema direita. Trump, ícone dessa agenda, age a partir da lógica “nós contra eles”, onde tarifas não são apenas medidas econômicas, mas munição simbólica.

O Brasil, nesse tabuleiro, tem valor estratégico. O ex-presidente Jair Bolsonaro, aliado assumido de Trump, está inelegível e sob iminente condenação penal. Ao impor tarifas que impactam diretamente o Brasil, Trump sinaliza aos seus pares ideológicos que ainda comanda a narrativa global da “resistência conservadora” contra governos progressistas e instituições multilaterais. A ala bolsonarista se aproveita disso: se fortalece no papel de vítima do sistema internacional e amplia seu discurso antiglobalista.

Mas essa é só a superfície.

💰 Segunda Camada: O Fio da Navalha Digital – Dados, Controle e Economia

A camada mais espessa do tarifaço é econômica, sim — mas é preciso especificar: ela é digital, ideológica e hegemônica.

O Brasil, um dos países mais conectados do mundo, é campo fértil para coleta de dados, influências algorítmicas e comércio eletrônico. Mas o crescimento de soluções autônomas, como o Pix — que movimentou mais de R$ 17 trilhões só em 2024 — reduziu a dependência das big techs americanas e causou incômodo real. O fracasso do WhatsApp Pay no Brasil é só um sintoma dessa nova soberania digital.

Mais que transações, o que se perde é poder de vigilância. As plataformas americanas já não detêm o mesmo monopólio sobre hábitos de consumo, geolocalização e microtransações dos brasileiros. E isso, para o coração do capitalismo digital, é um golpe.

O tarifaço, então, não é apenas uma medida comercial: é uma resposta agressiva à perda de influência ideológica e comportamental das big techs, e à construção de infraestrutura digital independente, como o Pix e o Drex (real digital).

🌍 Terceira Camada: BRICS, Desdolarização e o Novo Centro de Gravidade Global

A terceira camada é estrutural e anuncia a emergência de um novo paradigma: a multipolaridade.

Brasil, China e Índia — os três gigantes dos BRICS — já não orbitam a economia dos EUA. Eles moldam o próprio eixo. Juntos, respondem por cerca de 25% do PIB global em paridade de poder de compra e abrigam quase 40% da população do planeta.

Cada um exerce liderança setorial:

  • China em manufatura, IA e energia limpa;

  • Índia em inovação tecnológica e farmacêutica;

  • Brasil no agro, mineração estratégica e fintechs públicas.

Esse trio desafia não só a hegemonia comercial dos EUA, mas o próprio modelo de dominação baseado no dólar, nas plataformas digitais e nas instituições multilaterais sob tutela ocidental. A ofensiva tarifária é, nesse contexto, uma barricada desesperada diante do avanço da desdolarização, dos acordos em moedas locais e da consolidação de bancos como o NDB.

O medo é claro: perder não apenas os mercados, mas as narrativas que sustentam a supremacia global.

🛰️ A Última Camada: O Xadrez Geomilitar e o Brasil no Jogo da China

Por fim, no porão dessa crise, jaz o nervo mais sensível: a geopolítica militar e informacional.

O Brasil tem se aproximado silenciosamente da China em áreas de alta relevância estratégica:

  1. Cabos Submarinos – Ao integrar-se a redes de dados independentes dos EUA e da Europa, o país amplia sua soberania digital e se afasta do monitoramento anglo-americano.

  2. Satélites Sino-Brasileiros (CBERS) – Mais do que instrumentos civis, esses satélites têm capacidade dual e podem ser usados para vigilância territorial e defesa. Um avanço crucial em soberania espacial.

  3. Corredores Logísticos Intercontinentais – Projetos como a ferrovia ligando o Centro-Oeste a Ilhéus, conectada à Rota da Seda Marítima, ampliam a presença chinesa em território historicamente sob influência americana.

É nesse ponto que os interesses comerciais colapsam com os militares. Para os Estados Unidos, a perda de influência na América do Sul é uma ameaça que ultrapassa os cifrões — é uma questão de segurança nacional.

🧠 Conclusão: Tarifa não é só imposto. É ideologia, reação e medo.

O tarifaço de Trump, portanto, é a pontinha do iceberg. Por trás dele, o que se vê é:

  • O medo da perda de controle sobre dados e mentes;

  • A reação à nova arquitetura financeira dos BRICS;

  • A tentativa de conter a aproximação geoestratégica entre Brasil e China;

  • E, principalmente, a recusa em aceitar que o Sul Global está — finalmente — construindo seu próprio centro de gravidade.

O Brasil, ao avançar em soberania digital, energética, espacial e logística, não está apenas fazendo política pública. Está, conscientemente ou não, travando uma guerra simbólica pela autonomia do século XXI.

E se tarifas são disparadas como mísseis, que saibamos nos proteger com inteligência, unidade e estratégia.

Lisdeili Nobre é cronista, mestre em Gestão Pública, especialista em Políticas Públicas, delegada de política, professora universitária e defensora ativa da participação feminina na política.